IN MEMORIAM
Celebra-se neste ano o centenário de dois dos meus grandes mestres de vida - Vinicius de Morais e Albert Camus.
Camus, nascido em 1913 num bairro pobre de Mondovi, na Argélia ainda francesa, protagonista central dos debates existencialistas dos anos 50 -60, filósofo, escritor, jornalista e combatente indefectível pela liberdade - “épris de vérité et de liberté”, nas palavras de Bernard-Henri Lévy (Le Monde-Hors Série, Septembre-Novembre 2013) - marcou todo um ideário existencialista-humansta se esta expressão pode ser usada. Para a juventude que desconstruíu as filosofias essencialistas, a metáfora admirável do Mito de Sísifo (subtitulado Ensaio sobre o absurdo) representou o reconhecimento da imanência da vida humana, circunscrita aos seus limites inevitáveis, por isso condenada a um absurdo sem saída metafísica – e ainda assim apaixonada por esse engagement gratuito, da busca de sentido aqui e agora, mesmo se sabemos que morreremos amanhã sem outro além que nós próprios.
Controverso e avesso às heterodoxias, confrontou Sartre e Malraux, foi excomungado das cliques intelectuais e políticas da esquerda do tempo, pela coragem de pensar criticamente e contra a corrente. Morreu absurdamente num desastre de automóvel perto de Fontainebleau, em 1960 – coerente consigo próprio em todos os passos da sua vida.
De Camus me ficou, até hoje, a marca maior da filosofia e do pensamento político daquelas décadas: a vontade de intervir, a consciência do dever a que nos obriga a nossa humanidade – mesmo se absurda e sem além.
Já Vinicius traz na bagagem a luz maravilhosa do poeta que foi. Poeta que se expressava em música, músico-poeta que fez nascer, com outros grandes, a MPB. Músico, poeta e político que habitavam o corpo desleixado de um homem doce, boémio, amável, generoso, amante incondicional da vida, cantador da sensualidade da Menina de Ipanema tanto quanto crítico social cortante no inesquecível “Porque hoje é sábado.”. Homem de excessos por força da paixão de existir - gostava de beber, fumar, amar, conversar e conviver. Questionado sobre os seus numerosos casamentos, desconcertou o jornalista ávido de sensacionalismo, ao responder, sorrindo, que casaria “tantas vezes quantas fossem necessárias”…. Vinicius trouxe –me o valor do amor – “que seja eterno enquanto dure” -, o sentido sagrado da beleza da vida – que por isso tem de ser cantada, celebrada, musicada, vivida - e jamais desperdiçada. Morreu tranquilamente num banho de água tépida, tão doce a morte quanto a sua vida, feita de amor, poesia e música.
Faço pública a minha gratidão a estes dois homens grandes do tempo em que me foi dado viver. Porque continuo a acreditar no que deram a este mundo que é o nosso, quero ainda evocar as palavras proféticas com que Camus, no dia 10 de Dezembro de 1957, abriu o seu discurso de galardoado com o Nobel da literatura (Discours de Suède, Gallimard, Folio, 1997):
“Chaque génération, sans doute, se croit vouée à refaire le monde. La mienne sait pourtant qu’ele ne le refera pas. Mais sa tâche est peut-être plus grande. Elle consiste à empêcher que le monde se défasse”.
Maria do Céu Roldão